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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

MAIS UM CONTO:



Evasão
 Isaias Martins

I
             Caiu rapidamente o sol no horizonte. Aquele dia fora marcado pela fugacidade das horas. Todos os homens sentiram algo diferente a cada segundo que se passava. Alguns que ousaram entender a causa de tal incômodo, apenas acumularam para si, enfado e frustração.
           
II
             João entrou rapidamente em sua casa e dirigiu-se, sem cumprimentar alguém, diretamente para o banheiro. Intencionava despedir pelo ralo, nos braços da água, a mais forte lembrança daquele dia estreito. Sim, João tinha o hábito de se purificar ou, pelo menos, se enganar debaixo do chuveiro.
            A água fria que lhe tocava primeiramente o topo da cabeça ia pouco a pouco penetrando pelos seus poros até alcançar sua alma. Quando isso ocorria, João sentia um êxtase e se entregava em um sorriso de satisfação.
           
III
             Um olhar moribundo e um gesto impotente tentam alcançar o homem apressado naquele dia breve. O homem desvia-se para a esquerda, não permitindo que aquela mão leprosa, velha e fedida alcance a orla de sua calça de linho. Entra no carro rapidamente e, enquanto o vidro sobe lentamente, olha aquela velha no rosto. Na tentativa da miserável em esboçar alguma palavra de misericórdia, escorre-lhe dos lábios feridos uma mistura de saliva e sangue.
            Nos olhos do homem, surpreendentemente, não vi nojo, nem em sua face manifestação de repulsa. Pelo contrário, o que me assustara fora a satisfação que tivera: primeiramente por ter-se esgueirado daquele toque impuro e depois, por ter a certeza que era superior àquela desgraçada. Ligou o ar-condicionado e dirigiu anestesiado por aquele gozo.

IV
            A água lhe provocara um efeito contrário ao habitual. Abriu totalmente a queda d’água e a pressão interior aumentou. Tentou se livrar dela, jogando um acúmulo de água nos olhos. Lavou-os bem, como nunca fizera antes. Estavam límpidos. O homem virou-se. Apanhou a toalha com a mão esquerda. Enxugou o rosto. Desembaciou o espelho com a mão direita e procurou nele a paz que não viera com o banho.

V
            O ar-condicionado começou a gelar sua alma. Desligou-o. Rapidamente o calor fez derreter sua paz. Abriu dois vidros do carro. Não demorou mais que três segundos para que a poluição do fim de tarde lhe roubasse o oxigênio do cérebro. Pensou que morreria ali mesmo. Tentou compreender o porquê daquela mudança repentina dentro de si. Não conseguiu.
            O sol morria rapidamente e matava consigo aquele dia e aquele homem.
            Durante os quinze minutos de agonia que se seguiram o homem desejava ardentemente o encontro com o chuveiro.

VI
             Aquela velha estava dentro do espelho. Tentou novamente proferir alguma palavra de clemência. Havia mais sangue que baba em seus lábios desta vez.
            O homem fecha a mão direita e tenta afugentar a velha para fora de seu espelho. No mesmo instante o sangue da moribunda se apega à mão de João. Rapidamente tomou todo o seu braço e adentrava pelos seus poros.
            Mesmo com o vidro quebrado a velha continuava lá. O mais próximo que podia daquele homem desesperado. Aquele sangue penetrou o mais profundo que pode e mesclou-se com o sangue de João.

            O homem saiu do banheiro. Vestiu-se. Abriu uma garrafa de rum e bebeu até dormir.