Evasão
Isaias Martins
I
Caiu rapidamente o sol no horizonte.
Aquele dia fora marcado pela fugacidade das horas. Todos os homens sentiram algo
diferente a cada segundo que se passava. Alguns que ousaram entender a causa de
tal incômodo, apenas acumularam para si, enfado e frustração.
II
João entrou rapidamente em sua casa
e dirigiu-se, sem cumprimentar alguém, diretamente para o banheiro. Intencionava
despedir pelo ralo, nos braços da água, a mais forte lembrança daquele dia
estreito. Sim, João tinha o hábito de se purificar ou, pelo menos, se enganar
debaixo do chuveiro.
A água fria que lhe tocava
primeiramente o topo da cabeça ia pouco a pouco penetrando pelos seus poros até
alcançar sua alma. Quando isso ocorria, João sentia um êxtase e se entregava em
um sorriso de satisfação.
III
Um olhar moribundo e um gesto
impotente tentam alcançar o homem apressado naquele dia breve. O homem desvia-se
para a esquerda, não permitindo que aquela mão leprosa, velha e fedida alcance
a orla de sua calça de linho. Entra no carro rapidamente e, enquanto o vidro
sobe lentamente, olha aquela velha no rosto. Na tentativa da miserável em
esboçar alguma palavra de misericórdia, escorre-lhe dos lábios feridos uma
mistura de saliva e sangue.
Nos
olhos do homem, surpreendentemente, não vi nojo, nem em sua face manifestação
de repulsa. Pelo contrário, o que me assustara fora a satisfação que tivera:
primeiramente por ter-se esgueirado daquele toque impuro e depois, por ter a
certeza que era superior àquela desgraçada. Ligou o ar-condicionado e dirigiu
anestesiado por aquele gozo.
IV
A água lhe provocara um efeito
contrário ao habitual. Abriu totalmente a queda d’água e a pressão interior
aumentou. Tentou se livrar dela, jogando um acúmulo de água nos olhos. Lavou-os
bem, como nunca fizera antes. Estavam límpidos. O homem virou-se. Apanhou a
toalha com a mão esquerda. Enxugou o rosto. Desembaciou o espelho com a mão
direita e procurou nele a paz que não viera com o banho.
V
O ar-condicionado começou a gelar
sua alma. Desligou-o. Rapidamente o calor fez derreter sua paz. Abriu dois
vidros do carro. Não demorou mais que três segundos para que a poluição do fim
de tarde lhe roubasse o oxigênio do cérebro. Pensou que morreria ali mesmo.
Tentou compreender o porquê daquela mudança repentina dentro de si. Não
conseguiu.
O sol morria rapidamente e matava
consigo aquele dia e aquele homem.
Durante os quinze minutos de agonia
que se seguiram o homem desejava ardentemente o encontro com o chuveiro.
VI
Aquela velha estava dentro do
espelho. Tentou novamente proferir alguma palavra de clemência. Havia mais
sangue que baba em seus lábios desta vez.
O homem fecha a mão direita e tenta
afugentar a velha para fora de seu espelho. No mesmo instante o sangue da
moribunda se apega à mão de João. Rapidamente tomou todo o seu braço e
adentrava pelos seus poros.
Mesmo
com o vidro quebrado a velha continuava lá. O mais próximo que podia daquele
homem desesperado. Aquele sangue penetrou o mais profundo que pode e mesclou-se
com o sangue de João.
O homem saiu do banheiro. Vestiu-se.
Abriu uma garrafa de rum e bebeu até dormir.
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